Gilda Oswaldo Cruz, 1958-63

Relembrando Hans Graf no 30º ano de sua morte.

Na juventude, certos encontros modificam o rumo de toda uma vida. Ao decidir tomar parte pela primeira vez no Curso de Verão da Pró-Arte, organizado todos os anos por Maria Amélia Resende na cidade serrana de Teresópolis, mal sabia que as personalidades que lá encontraria iriam determinar uma parte decisiva da minha formação.
Vinha de uma ambiente familiar e musical fortemente determinado pela influência francesa. Meu mestre de piano até então, Arnaldo Estrella, estudara em Paris. Em nossa história familiar, a França tivera um papel importante. Ao chegar em Teresópolis, porém, deparei pela primeira vez com o vigor e a originalidade da cultura austro-alemã. O curso de verão nos oferecia não só aulas com professores de instrumento, mas também palestras sobre estética musical, história da música, prática de canto coral e, ainda, concertos oferecidos pelos professores. No fim do curso, realizava-se um concurso para bolsa de estudo.
Nas aulas teóricas, exercia um fascínio especial a figura de Joachim Koellreutter, compositor e professor alemão, que nos deslumbrava com a sua cultura multifacetada e a sua argumentação apaixonada a favor da Segunda Escola de Viena, na qual ele se formara como compositor enquanto discípulo de Ernest Krenek.
Como professor de piano lá estava o jovem austríaco Hans Graf, laureado duas vezes no concurso Rainha Elisabeth da Bélgica, casado com a pianista brasileira Carmen Vitis Adnet, ela própria laureada no Concurso Chopin em Varsóvia.
Lembro claramente da minha surpresa ao ouvi-lo tocar. Era um estilo, uma maneira de relacionar-se com a música, inteiramente novos para mim. Diria que em vez do culto da personalidade, praticado por muitos pianistas que ouvira, Hans Graf punha-se a serviço da partitura, com grande objetividade, clareza de propósitos e distância de qualquer modismo individual. Suas aulas, num português perfeito, decorriam todas nesse sentido. Foi para mim uma revolução.
No ano seguinte, voltei a frequentar o curso de verão e cresceu a minha disposição de aprofundar aqueles novos ensinamentos. Passávamos os trinta dias que duravam o curso inteiramente imersos em música, seja estudando instrumentos, seja ouvindo os recitais dos professores, com repertórios nunca antes conhecidos, seja tomando ou assistindo ás suas aulas ou, ainda, cantando no coral. No fim do curso, o coro apresentava-se em público. Foi lá, também, que tive a primeira aula de alemão.
Formou-se, no nosso grupo de jovens músicos, uma vontade irresistível de ir ter à alma mater de toda aquela ebulição de cultura que foi a Segunda Escola de Viena.
Como meu pai se opunha formalmente à minha escolha da música como profissão, tive de encontrar meios alternativos para chegar a Viena com o objetivo de estudar com Hans Graf, que para lá se decidira a regressar, com toda a família, Carminha, sua mulher, a pequena Trixie e a recém-nascida Clarissa.
Havia na época um programa de televisão, O céu é o limite, e lá resolvi me apresentar, respondendo às perguntas sobre um autor que lera e relera naquela época, Marcel Proust. Graças aos conhecimentos que fiz no programa, consegui, além do prêmio monetário, uma promessa de emprego a meio expediente na embaixada do Brasil da capital austríaca.
A partir do outono de 1958, a turma de jovens músicos que se conhecera nos cursos de Teresópolis estava por fim reunida na capital às margens do Danúbio. Cito alguns: Berenice Menegale, Claudio Stresser, Anery Aste, Eduardo Hazan, Luiz Eça, Eliana Cardoso, Regina Beiguelman.
Era eu, entre eles, a única estudante-trabalhadora, e para mim a jornada dupla significava um esforço redobrado. Poderia dizer mesmo jornada tripla, pois praticamente todas as noites íamos em grupo ouvir um concerto ou ópera.Na primeira audição que Hans Graf organizou na então chamada Akademie für Musik und Darstellende Kunst depois de sua chegada do Brasil, tive a honra de participar tocando a Segunda Sonata de Hindenmith.
Lembro-me de que Hans, com a sua fina arte psicológica, escolhera para mim, naquele primeiro ano, um repertório que achava adequado à minha personalidade: as Variações Goldberg de Bach, a mencionada Sonata de Hindenmith, e uma das obras de que ele gostava especialmente, as Variações de Brahms sobre um tema de Schumann, op. 9. O tema schumaniano dessa obra expressa uma profunda melancolia, e quer me parecer que Hans reconhecera em mim os problemas anímicos causados pela recusa paterna em apoiar a minha vocação.
Quando alguns poucos anos mais tarde eu decidi, acho que precocemente, participar do Concurso Internacional em Munique, lá foi ele no seu carro à capital bávara para encorajar-me e apoiar-me.
Antes de terminar o curso de virtuosismo na Academia e prestar com êxito a Reifepruefung, participei do Concurso Internacional Elena Rombro-Stepanow, organizado pela Academia, no qual obtive o primeiro prêmio, algo que deixou o mestre visivelmente feliz.
Na nossa última aula, antes de partir para a Holanda onde iria me reunir ao meu jovem marido austríaco, toquei para o Hans a Sonata de Beethoven op. 31 nº 2 e dele recebi o maior elogio que poderia ouvir: “Você fez transparecer o conteúdo filosófico desta obra.”
Vinte anos mais tarde, já residindo em Barcelona para retomar minha vocação musical interrompida, voltei a tocar em público. Carminha e Hans, sempre generosos e solícitos, organizaram para mim um recital em Viena.
Obrigada, Hans, por tudo. Você foi um grande professor e um autêntico artista.